terça-feira, 8 de julho de 2014


 

Roses for youSempre que eu recebia a noticia da morte de alguém, nem que em sonho, deixava o meu corpo cair, realizava esse mantra sem som. 
Com o tempo perdemos os cadarços dos sapatos, perdemos a saliva dos lábios, perdemos de ver o pôr-do-sol, borrachas canetas meias vontade. Mas nunca aprendemos a lidar com a perda de alguém que gostamos. 
Primeiro foi o meu avô, era verão (os avós costumam falecer no verão) quando o sal resseca a  pele e os vinhos vencem. Ele se foi, como as uvas deixam de existir; eu tombei. A lembrança mais nítida que tenho daquela época era das tardes de café na casa dele. Pão, manteiga, café com leite (bastante leite), pouco açúcar, para ele adoçante. O chão de madeira gemendo, meu avô na poltrona, minha avó ocupada com a chaleira, meu pai no banquinho do balcão lendo jornal, e eu não lembro onde estava. Minha avó acreditava que quando a faca caía no chão, um homem iria vir visitar, quando um garfo caía no chão, uma mulher. Quando o meu avô faleceu, eu caí – caímos. No carro, meu pai não me deixou colocar os fones de ouvido, dizia: não se escuta música quando alguém morre. E foi assim, um dia sem som, chuvoso e com café na capelinha. Meu avô era diabético, e devido ao fato de só comer doces escondido, todas as lembranças que tenho dele, até os sermões de avô eram doces.
Naquele mesmo verão morreu J.H., plantei uma margarida em cima do seu túmulo para sinalizar que ali jazia um cadáver, as flores combinam com os defuntos. Desde então, pratiquei esse ritual: meu pai enterrava os animais, eu plantava algo que brotasse das tripas deles e que fizesse com que eles revivessem. Meu pai não gostava, pedia para que eu parasse. Mas eu continuava, uma cruz em uma mão uma margarida noutra. Durante a primavera meu cemitério floria, um mar amarelo, uma bomba de amor necrológico. 
Meu pai faleceu no verão, dois anos após o seu pai. Caiu do seu cavalo e manchou as margaridas de vermelho. Ele era um homem forte que gostava de café com leite. Naquela noite ninguém precisou me contar o que aconteceu. Deixei Memórias Póstumas de Brás Cubas no banquinho do hospital e saí correndo para vê-lo, eu já sabia. Os pássaros lá fora sabiam, seu cavalo sabia e até a cafeteira. Tombei, três comprimidos não conseguiram me levantar. Tombei por anos, até as minhas unhas crescerem o suficiente para cravá-las naquele buraco e escalar até a superfície. Quando ficamos muito tempo na escuridão e enxergamos finalmente a luz do dia, os olhos doem - para evitar a dor, eu dormia. 
Se estivesse na quinta série, escreveria um texto comparando as palavras "florescer" e "falecer" e de como meu pai ficou bonito em seu paletó preto, com uma gravata prata e uma flor vermelha. Ele havia florescido e agora brotava.

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